Entrevista com Dra. Anne Geubelle, CEO da Prologica

Qual a sua opinião em relação à utilização e valorização do BI no setor da saúde em Portugal?
A gestão dos dados é uma questão crítica para o setor da saúde, que ficou ainda mais evidenciado desde o início da pandemia COVID-19.
É cada vez mais necessário tratar e analisar as informações para orientar a gestão operacional e clínica das instituições de saúde, decidir as melhores opções estratégicas e garantir um atendimento de qualidade que atenda às expectativas de todos.
Hoje, no setor da saúde, é recorrente ouvirmos falar de inteligência artificial (AI), de gestão em saúde baseada em valor (Value-Based Healthcare) ou de internet das coisas (IOT), mas se analisarmos em detalhe a maturidade tecnológica das diferentes realidades, a grande maioria das instituições de saúde ainda não está preparada para endereçar estes desafios. O primeiro passo seria, sem dúvida, a implementação de plataformas de BI, assentes num repositório de dados transversal às aplicações de gestão que já são utilizadas (Ex: clínicas, administrativas, MCDT, laboratório,…). Com o objetivo de organizar a informação e visualizá-la através de relatórios ou dashboards, este avanço iria depois permitir, num segundo passo, que as instituições começassem a analisar os dados no sentido de gerar insights e valor quer para o profissional de saúde e gestor, quer naturalmente para o cidadão/doente.
No fundo, tudo se resume em dotar as instituições de saúde com ferramentas de gestão simples para permitir uma análise transversal das operações, no sentido de tomar decisões baseadas em dados do mundo real, disponíveis em tempo útil.
Muitas vezes são feitas críticas à ausência de retorno (ROI) sobre a transformação digital na saúde, mas, na realidade, embora tenham sido feitos investimentos significativos na informatização da saúde (Ex: aplicações, dispositivos médicos, robotização) nada ou pouco foi feito na área de gestão da informação clínica ou administrativa.  Para isso, não é preciso projetos disruptivos megalómanos, é preciso utilizar o que já temos – os dados e colocá-los nas mãos das pessoas que mais podem beneficiar deles: os profissionais de saúde e, claro, os gestores.
Capacitarmos as equipas com ferramentas de BI será a chave para o futuro de uma saúde mais eficiente, otimizada, sustentável e com mais valor. Porém, importa denotar que este processo consiste numa transformação incremental, onde é crucial, desde o início, assegurar o envolvimento e a adopção destas ferramentas por todos os profissionais que vão ser impactados.

Face à vossa experiência, o que é que o setor da saúde, neste domínio, pode ensinar e aprender com outros setores? E também face à vossa experiência Internacional como considera o estado do BI em Portugal em relação a outras geografias?
Todas as empresas do setor privado, qualquer que seja a sua área de atuação, utilizam os dados para gerir as suas operações, definir as suas opções estratégicas e, mais ainda, perceber e antecipar as necessidades dos seus clientes. Dentro destas, p.e., o financeiro tem os dados em tempo real, faz orçamentos e previsões, o comercial tem dados sobre as vendas realizadas, sobre os seus clientes, e os decisores têm na sua mão os resultados e as previsões em tempo real para poderem tomar decisões acertadas. Todos atuam com base em dados. É uma questão de competitividade e, em certos casos, de sobrevivência.
Paradoxalmente, num setor crítico como o setor público da saúde, apesar do aumento crescente da despesa com tendência para uma aceleração significativa da mesma, parece não existir em todas as instituições de saúde a preocupação quanto à gestão e à medição dos resultados no sentido de melhorar a performance operacional e financeira e incrementar o valor dos cuidados de saúde. São fatores que explicam esta situação: o modelo de financiamento do setor da saúde, a ausência de ferramentas de gestão adaptadas e acessíveis pelo profissional de saúde (como as ferramentas de BI), a falta de sistema de incentivos para os profissionais de saúde, e a cultura organizacional.
Uma coisa é certa: não podemos gerir sem informação fiável, completa, acessível e obtida em tempo real. É o básico expectável da gestão e a saúde não constitui uma exceção.
Relativamente à situação além fronteiras, diria que não é muito diferente, a não ser em geografias onde o financiamento é maioritariamente privado. Dado o aumento das doenças crónicas e oncológicas, existe uma preocupação crescente na Europa, nos Estados Unidos e na América do Sul em perceber e controlar a variabilidade dos cuidados de saúde, dos seus resultados para o doente e dos custos associados. A perseguição desse objetivo está a contribuir, em larga escala, para a aceleração da transformação digital da saúde e para a adoção de soluções tecnológicas para medir, analisar e comparar grandes quantidade de dados.

Como interpreta os profissionais disponíveis nesta área de BI e como entidade empregadora o que gostaria de ter e não tem disponível?
Existem profissionais muito competentes nas áreas de infraestrutura, gestão e análise de dados em Portugal. O que é difícil de encontrar são profissionais com essas características que tenham conhecimento e experiência no setor da saúde. E isso faz a diferença, nomeadamente quando estamos a falar de integração de sistemas, análise de dados e criação de algoritmos de gestão clínica. Acredito, mais uma vez, que é uma questão de tempo.  Para nós, a saúde é o nosso ADN e por isso, as nossas equipas acabam por adquirir essa especialização naturalmente  pela convivência diária com essa área de atuação.
Uma vantagem que temos, é que os recém-licenciados hoje preferem trabalhar numa empresa que procura impactar o mundo de amanhã. A saúde é sem dúvida uma área rica em desafios para o futuro. Percebemos isso com a pandemia e assistimos a uma onda crescente de colaboração no sentido de resolver uma situação que impacta a saúde e o bem-estar de todos.

Na vossa experiência na implementação de projetos de BI, quais os desafios que as vossas equipas enfrentam e que considera ser fator de sucesso para que os vossos clientes possam tirar máximo valor destas soluções?
A realidade aplicacional dos hospitais portugueses é deveras complexa e  estruturada em silos de informação, o que “impossibilita” uma análise unívoca e transversal do utente e do seu percurso, bem como da realidade da atividade departamental. Este ponto de partida aliado à qualidade da informação registada são o maior desafio para a implementação de soluções semelhantes à nossa. Contudo e tendo em conta todo o trabalho que já temos feito nos diversos clientes e tendo já integrado com a esmagadora maioria dos sistemas existentes no mercado, o processo para nós já está muito automatizado e já sabemos bem quais os problemas comuns e como os resolver, o que torna o processo de implementação da nossa solução muito mais ágil e fácil. Este ponto é muito importante do ponto de vista dos clientes pois é a diferença entre comprar uma solução e uma equipa que já sabe bem como estes processos todos funcionam e ter todos os mecanismos já validados de base ou adquirir uma solução/equipa que irá fazer tudo pela primeira vez, sendo neste o risco imensamente superior.
Para além disso o processo de acompanhamento e proximidade com os utilizadores finais é fundamental para que eles possam apreender e retirar o maior partido de toda a informação que passam a ter ao dispor de um único clique, o que se traduz numa realidade diária muito diferente pois permite uma gestão e decisões baseadas em evidências e factos tangíveis. Nos nossos projetos a componente de adoção é uma condição de base desde o início até que os utilizadores tenham autonomia e capacidade de retirar todo o valor da imensidade de informação que o sistema lhe fornece.

Trabalhando no setor da saúde em que a informação é de caráter sensível e complexo, como conseguem gerir o equilíbrio entre dimensão ética e a utilização da informação ao serviço da gestão?
Na saúde, acima de todos os setores, existe uma criticidade muito grande no que concerne à privacidade, segurança e ética no acesso aos dados. A nossa estratégia desde o início foi assumir o conceito de “privacy by design”, sendo essa vertente a essência de toda a nossa solução. Isso é assegurado através da arquitetura tecnológica da solução e dos mecanismos de arquivo e tratamento dos dados. Todo este processo decorre dentro das instalações do cliente, em infraestrutura própria ou em cenários cloud. Neste último caso, toda a segurança e privacidade é garantida através da disponibilização de uma solução cloud privada e única por instituição. Para além disso, é efetuado um controlo muito detalhado sobre a tipologia de dados a que cada utilizador pode aceder, seja por instituição, departamento, serviço ou até patologia do utente. Desta forma, cada utilizador apenas acede à informação que o seu perfil tem autorização.
Esta entrevista saiu na newsletter do dia 15 de janeiro de 2021.

Lisboa, 21 de dezembro de 2020,

José Rui Gomes,

Presidente da Associação Portuguesa de Business Intelligence